segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
Prólogo
Susan acabava de deixar o Castello Sforzesco e caminhava, sem pressa, pela Via Dante. Observava o reflexo narcíseo das catedrais no gelo, o jogo de caleidoscópios cristalinos que iluminavam a noite de Milão, as pessoas indo e vindo pela passarela; algumas tão ou mais deslumbradas do que si, outras menos atentas ao espetáculo noturno daquela cidade. Não importava: sentia-se livre, desperta para as sensações que a beleza a sua volta e o frio aconchegante da estação provocavam nela.
Vinha folheando o Castelo dos Destinos Cruzados, ansiosa por adentrar suas imediações, de preferência, embaixo das cobertas e bebericando um chá fumegante. Nem imaginava que, a caminho da estalagem onde buscava aconchego, cairia na armadilha que as cartas de seu destino lhe preparavam. De súbito, um esbarrão...
Em desespero, John não podia perder o trem para Padova, baldeação para Veneza. A estação o aguardava sem paciência, mas sua sina lhe encruzilhava sem nenhuma pressa. De surpresa, um esbarrão... Sua pasta ruiu, espalhando partituras, fotos e textos. Enfiou os papéis na pasta, de qualquer jeito, vociferando em brando tom uma série de termos sutis. O rubor na face de Susan a denunciava. Quis ajudá-lo, insistindo em recolher as folhas mesmo que, sem palavras, ele pedisse o contrário. John tomou fôlego para protestar quando, por acidente, sua mão encontrou a dela... A leveza do toque acordou ambos para sensações dos mais variados matizes. E reparou nele... O olhar e a austeridade em contraste com uma ironia quase inebriante magnetizaram-na. Susan sustentou o olhar que a desafiava. Viu um sorriso acontecer, de repente. Os olhos dele, antes fixos nos dela, agora passeavam, disfarçadamente, pelas curvas que o gracioso vestido desenhava. Descansaram, enfim, no rosto dela, observando-o com minúcia: os traços delicados, as maçãs do rosto suculentas, os lábios tentadores... E se permitiu sentí-la, um pouco mais. Contatos mais íntimos já foram menos intensos e, verdadeiramente, ficaria ali por muito tempo, se pudesse. E então reparou no livro que ela trazia consigo: “O Castelo dos Destinos Cruzados...”. Pensou em dizer, mas não vinha ao caso. Limitou-se à admiração. E o que mais descobriria? Ficou imaginando de onde vinha, para onde iria. Não fazia a menor diferença. Em poucos minutos a veria sumir rua adentro. Mas continuou a observá-la. Seu olhar caminhava, demoradamente, dos olhos aos lábios de Susan, sem soltar sua mão. Viu-a fechar os olhos, de contentamento e sorriu satisfeito. Então se lembrou de ir. Sorriu e soltou sua mão da dela, devagar. Sem mais esperar, deixou-a ali. Mas a vontade de vê-la o dominou, e sem resistir, olhou pra trás. Ela ainda estava lá. Piscou, sedutoramente, e foi presenteado com um leve sorriso. Agora era a sua vez de sorrir.
Contemplou-o até perdê-lo de vista. Estática, permaneceu olhando para um ponto qualquer, no horizonte, e então passou a refletir sobre aquele encontro. Caminhava distraída até esbarrar em um estranho. E, agora, via-se fascinada pelo desconhecido que jamais teria a oportunidade de ver, novamente. Ah! Se ela pudesse... Certamente faria mais do que somente admirá-lo. O que será que diria a ele? Corou, lembrando-se de como foi olhada, do calor que lhe percorreu o corpo quando acariciou a sua mão com a dele, do corpo bem delineado. Jamais se sentiu assim, antes, e sorriu concluindo que aquela fora a experiência mais interessante que vivenciou. O impacto do inusitado ainda percutia nela, atordoada com a gama de sensações que ele lhe provocou. Enfim, decidiu seguir seu itinerário, mas antes que pudesse reagir, notou um ponto luminoso, no chão. Aproximou-se do objeto e sorriu ao tomá-lo nas mãos. Era um diapasão de prata, pouco sonoro, mas de grande valor afetivo, supunha. Passou a tocar o suave brinquedo, mas a consciência sussurrava que o músico poderia sentir sua falta. Antes inerte, agora em desespero. Saiu em disparada.
Dobrou uma esquina e avistou-o, ao longe. Avançou mas rápido, mas já não o viu. Correu mais e o reconheceu entre os rostos diversos, mas logo viu sua imagem se liquefazer. Velocidade e pulsação aumentando à medida do seu desespero, buscou o ar que já não tinha e continuou. Pareceu encontrá-lo no infinito e apertou o passo para alcançá-lo, mas, em vão, perdeu-o de vista. Seguiu adiante, lutando contra a angústia que a invadia. Respirou fundo e ultrapassou seu próprio limite. Em fim o viu, no fim da rua. O relógio pungindo num ritmo torturante, o batimento acelerado e o acelerômetro cego não podia prever o pior. Quando pareceu alcançá-lo, o alívio cedeu lugar à agonia: olhou-o bem no fundo nos olhos dele, e sem entender a súplica velada, olhou para o lado e compreendeu o medo em seus olhos. Viu-se encurralada numa travessia impiedosa, que a desafiava só por sadismo. Olho-o, uma vez mais, e decidiu. Ele precisava viver. Atirou-o longe e no momento seguinte só pôde ver o clarão dos faróis...
A desgraça humana alimenta uma catarse incompreensível. A curiosidade ultrapassa a ética. As pessoas se amalgamavam em volta do corpo apático. As luzes da ambulância tornavam a morte ainda mais psicodélica. Mas Susan ainda pulsava. O espetáculo atraía cada vez mais gente, o burburinho, a imprensa, o absurdo servindo-se do banquete à mesa da injúria, a incerteza, o delírio. A cúpula, a essa hora, já se reunia para estourar o champagne. Uma concorrente a menos no império Hirst. Mas que diferença fazia, agora? Desacordado, John estava alheio a tudo isso. Felizmente, ou não...
E agora tinha o olhar perdido nela... Desfalecida, pálida, abandonada na maca. E ele lá... Jogado na parede de um corredor frio, por onde a morte caminhava com indiferença, esbarrando nas almas de branco que transitavam por ali numa incessante correria. Viu-se encurralado por um par de vidros. Em um deles Milão chorava torrencialmente, num lamento que trovejava. No outro, ela jazia com um fio de vida. E no meio estava a covardia, de braço engessado e chovendo a última gota de vileza. A alma antes congelada pelo medo, agora estava ali, apática e tomada por um remorso sufocante; e não menos gélida, queimava. No outro instante eles atravessaram a porta, acorrentados por um desespero pungente. Mas sorriam. Talvez lhes restasse a imagem da comédia, porque a da tragédia... Era piada. Ela devia ser neta dele... Se a conhecia bem, sabia que ela lutava com galhardia para sobreviver, mesmo desacordada, John escutou ele dizer. A mão dela recheava as dele. E a da avó passeava pelos cabelos dela. A UTI, morada da angústia, agora oferecia abrigo aos três. John ficou de fora. Sequer teve o direito de se aproximar e voltou pra Nova York sem ao menos saber o nome dela. Veneza... Veneza já não era lugar algum. Em casa o pesadelo o atormentava noite após noite. Nada sabia sobre ela. Jamais a encontraria? Morreria com aquela angústia lhe rasgando o peito?
Mais um natal imerso em solidão. Ganhou o tédio de presente, via correio expresso e dentro de uma caixa monocromática, nem preta e nem branca. Ceou um resto de sardinha enlatada, esquecida há dias na geladeira e se recolheu. Lá fora, Nova Iorque piscava ao som do tilintar dos caixas. Lá dentro, ele compartilhava a solidão com um mundo de rostos incógnitos que lhe invadiam a tela do notebook. Só por descuido, resolveu checar o jornal pela terceira vez naquele dia. Nada de novo. Coréia do Norte lança novos mísseis; EUA e Rússia assinarão acordo de cooperação militar; Twitter pede registro da palavra tweet; Herdeira do Império Hirst deixa hospital esta noite, em Milão. Essa era interessante. “Princesinha quebra a unha e sofre enfarto. Só falta.” Riu. Clicou só de gozação, mas não teve graça nenhuma. Suas mãos congelaram, mas não foi de frio. O ar faltou e o coração bateu acelerado traçando rota de fuga. Passava os olhos pela tela, incrédulo. “Absurdo! Como é que você não viu isso, idiota?! Susan... Susan Hirst...” Balançava a cabeça, em negação, angustiado e aliviado ao mesmo tempo. “Coma... poderia estar morta. Que frio! Acho que vou tomar uma água... não... Que delícia de mulher. Deliciosamente corajosa... Amanhã tenho que começar a fazer o trabalho do Carter... Ela está viva! Viva! Cara, ela está viva!”. Gargalhava. Deitou mas não dormiu de imediato. Era difícil de acreditar, e maravilhoso ao mesmo tempo. Adormeceu sorrindo.
E o diapasão ficou no bolso do casaco dela...
Vinha folheando o Castelo dos Destinos Cruzados, ansiosa por adentrar suas imediações, de preferência, embaixo das cobertas e bebericando um chá fumegante. Nem imaginava que, a caminho da estalagem onde buscava aconchego, cairia na armadilha que as cartas de seu destino lhe preparavam. De súbito, um esbarrão...
Em desespero, John não podia perder o trem para Padova, baldeação para Veneza. A estação o aguardava sem paciência, mas sua sina lhe encruzilhava sem nenhuma pressa. De surpresa, um esbarrão... Sua pasta ruiu, espalhando partituras, fotos e textos. Enfiou os papéis na pasta, de qualquer jeito, vociferando em brando tom uma série de termos sutis. O rubor na face de Susan a denunciava. Quis ajudá-lo, insistindo em recolher as folhas mesmo que, sem palavras, ele pedisse o contrário. John tomou fôlego para protestar quando, por acidente, sua mão encontrou a dela... A leveza do toque acordou ambos para sensações dos mais variados matizes. E reparou nele... O olhar e a austeridade em contraste com uma ironia quase inebriante magnetizaram-na. Susan sustentou o olhar que a desafiava. Viu um sorriso acontecer, de repente. Os olhos dele, antes fixos nos dela, agora passeavam, disfarçadamente, pelas curvas que o gracioso vestido desenhava. Descansaram, enfim, no rosto dela, observando-o com minúcia: os traços delicados, as maçãs do rosto suculentas, os lábios tentadores... E se permitiu sentí-la, um pouco mais. Contatos mais íntimos já foram menos intensos e, verdadeiramente, ficaria ali por muito tempo, se pudesse. E então reparou no livro que ela trazia consigo: “O Castelo dos Destinos Cruzados...”. Pensou em dizer, mas não vinha ao caso. Limitou-se à admiração. E o que mais descobriria? Ficou imaginando de onde vinha, para onde iria. Não fazia a menor diferença. Em poucos minutos a veria sumir rua adentro. Mas continuou a observá-la. Seu olhar caminhava, demoradamente, dos olhos aos lábios de Susan, sem soltar sua mão. Viu-a fechar os olhos, de contentamento e sorriu satisfeito. Então se lembrou de ir. Sorriu e soltou sua mão da dela, devagar. Sem mais esperar, deixou-a ali. Mas a vontade de vê-la o dominou, e sem resistir, olhou pra trás. Ela ainda estava lá. Piscou, sedutoramente, e foi presenteado com um leve sorriso. Agora era a sua vez de sorrir.
Contemplou-o até perdê-lo de vista. Estática, permaneceu olhando para um ponto qualquer, no horizonte, e então passou a refletir sobre aquele encontro. Caminhava distraída até esbarrar em um estranho. E, agora, via-se fascinada pelo desconhecido que jamais teria a oportunidade de ver, novamente. Ah! Se ela pudesse... Certamente faria mais do que somente admirá-lo. O que será que diria a ele? Corou, lembrando-se de como foi olhada, do calor que lhe percorreu o corpo quando acariciou a sua mão com a dele, do corpo bem delineado. Jamais se sentiu assim, antes, e sorriu concluindo que aquela fora a experiência mais interessante que vivenciou. O impacto do inusitado ainda percutia nela, atordoada com a gama de sensações que ele lhe provocou. Enfim, decidiu seguir seu itinerário, mas antes que pudesse reagir, notou um ponto luminoso, no chão. Aproximou-se do objeto e sorriu ao tomá-lo nas mãos. Era um diapasão de prata, pouco sonoro, mas de grande valor afetivo, supunha. Passou a tocar o suave brinquedo, mas a consciência sussurrava que o músico poderia sentir sua falta. Antes inerte, agora em desespero. Saiu em disparada.
Dobrou uma esquina e avistou-o, ao longe. Avançou mas rápido, mas já não o viu. Correu mais e o reconheceu entre os rostos diversos, mas logo viu sua imagem se liquefazer. Velocidade e pulsação aumentando à medida do seu desespero, buscou o ar que já não tinha e continuou. Pareceu encontrá-lo no infinito e apertou o passo para alcançá-lo, mas, em vão, perdeu-o de vista. Seguiu adiante, lutando contra a angústia que a invadia. Respirou fundo e ultrapassou seu próprio limite. Em fim o viu, no fim da rua. O relógio pungindo num ritmo torturante, o batimento acelerado e o acelerômetro cego não podia prever o pior. Quando pareceu alcançá-lo, o alívio cedeu lugar à agonia: olhou-o bem no fundo nos olhos dele, e sem entender a súplica velada, olhou para o lado e compreendeu o medo em seus olhos. Viu-se encurralada numa travessia impiedosa, que a desafiava só por sadismo. Olho-o, uma vez mais, e decidiu. Ele precisava viver. Atirou-o longe e no momento seguinte só pôde ver o clarão dos faróis...
A desgraça humana alimenta uma catarse incompreensível. A curiosidade ultrapassa a ética. As pessoas se amalgamavam em volta do corpo apático. As luzes da ambulância tornavam a morte ainda mais psicodélica. Mas Susan ainda pulsava. O espetáculo atraía cada vez mais gente, o burburinho, a imprensa, o absurdo servindo-se do banquete à mesa da injúria, a incerteza, o delírio. A cúpula, a essa hora, já se reunia para estourar o champagne. Uma concorrente a menos no império Hirst. Mas que diferença fazia, agora? Desacordado, John estava alheio a tudo isso. Felizmente, ou não...
E agora tinha o olhar perdido nela... Desfalecida, pálida, abandonada na maca. E ele lá... Jogado na parede de um corredor frio, por onde a morte caminhava com indiferença, esbarrando nas almas de branco que transitavam por ali numa incessante correria. Viu-se encurralado por um par de vidros. Em um deles Milão chorava torrencialmente, num lamento que trovejava. No outro, ela jazia com um fio de vida. E no meio estava a covardia, de braço engessado e chovendo a última gota de vileza. A alma antes congelada pelo medo, agora estava ali, apática e tomada por um remorso sufocante; e não menos gélida, queimava. No outro instante eles atravessaram a porta, acorrentados por um desespero pungente. Mas sorriam. Talvez lhes restasse a imagem da comédia, porque a da tragédia... Era piada. Ela devia ser neta dele... Se a conhecia bem, sabia que ela lutava com galhardia para sobreviver, mesmo desacordada, John escutou ele dizer. A mão dela recheava as dele. E a da avó passeava pelos cabelos dela. A UTI, morada da angústia, agora oferecia abrigo aos três. John ficou de fora. Sequer teve o direito de se aproximar e voltou pra Nova York sem ao menos saber o nome dela. Veneza... Veneza já não era lugar algum. Em casa o pesadelo o atormentava noite após noite. Nada sabia sobre ela. Jamais a encontraria? Morreria com aquela angústia lhe rasgando o peito?
Mais um natal imerso em solidão. Ganhou o tédio de presente, via correio expresso e dentro de uma caixa monocromática, nem preta e nem branca. Ceou um resto de sardinha enlatada, esquecida há dias na geladeira e se recolheu. Lá fora, Nova Iorque piscava ao som do tilintar dos caixas. Lá dentro, ele compartilhava a solidão com um mundo de rostos incógnitos que lhe invadiam a tela do notebook. Só por descuido, resolveu checar o jornal pela terceira vez naquele dia. Nada de novo. Coréia do Norte lança novos mísseis; EUA e Rússia assinarão acordo de cooperação militar; Twitter pede registro da palavra tweet; Herdeira do Império Hirst deixa hospital esta noite, em Milão. Essa era interessante. “Princesinha quebra a unha e sofre enfarto. Só falta.” Riu. Clicou só de gozação, mas não teve graça nenhuma. Suas mãos congelaram, mas não foi de frio. O ar faltou e o coração bateu acelerado traçando rota de fuga. Passava os olhos pela tela, incrédulo. “Absurdo! Como é que você não viu isso, idiota?! Susan... Susan Hirst...” Balançava a cabeça, em negação, angustiado e aliviado ao mesmo tempo. “Coma... poderia estar morta. Que frio! Acho que vou tomar uma água... não... Que delícia de mulher. Deliciosamente corajosa... Amanhã tenho que começar a fazer o trabalho do Carter... Ela está viva! Viva! Cara, ela está viva!”. Gargalhava. Deitou mas não dormiu de imediato. Era difícil de acreditar, e maravilhoso ao mesmo tempo. Adormeceu sorrindo.
E o diapasão ficou no bolso do casaco dela...
Não autorizo cópia parcial ou intergral desta obra.
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